TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora

Ano I Número 8 - Agosto 2009

Conto - Ruy Espinheira Filho

Ana Maria Pacheco - Memória Roubada II, 2008
Polychromed wood, gold leaf, slate base - 200 x 240 x 300 cm

Visita

Oi, mãe, já terminando de almoçar?

Oh, meu filho, me dê um abraço. Ah, que bom... Quando foi que você chegou?

Estou chegando agora, mãe.

Como foi de viagem?

Eu não estava viajando, mãe.

Você precisa tomar cuidado com essas viagens, as estradas estão muito perigosas.

Mas eu já disse, mãe, não estava viajando. Eu não viajo quase nunca. Faz anos que não viajo para lugar nenhum. Agora, deixe a moça tirar o prato, os talheres, logo vem um pratinho para a senhora comer a sobremesa.

Acho que a sobremesa acabou.

Está vendo este pacote, mãe? São sobremesas que eu trouxe. E mais o perfume que a senhora encomendou. E outras coisas eu já deixei com D. Delza, que cuida da senhora. Veja, seus doces preferidos.

E o queijo?


Aqui também, não ia me esquecer de que a senhora gosta de comer doce com queijo.

Sempre gostei, desde menina. Quer saber uma coisa engraçada, meu filho?

Quero, mãe.

Hoje eu só me lembro bem de coisas daquele tempo velho. De outras eu esqueço.

É normal, mãe, está acontecendo também comigo.

Você puxou muito a mim.

Sim, inclusive fisicamente.

Todo mundo acha.

Sem a beleza, claro...

Que beleza?

A sua.

Ah... Cadê o doce?

Aqui, mãe. Veja o pratinho, a colherinha, vou servir a senhora. Goiaba ou banana?

Os dois.

Eu já sabia. Estes pedaços estão bons?

Bote mais um pouquinho.

A senhora continua em forma. Sempre me lembro da senhora dizendo que um doce alegra a refeição.

E alegra mesmo. Corte mais queijo.

Tudo bem.

Depois dos doces, um cafezinho, não é?

Claro. Aliás, trouxe também café, já o entreguei a D. Delza.

Café é bom, meu pai dizia. Café e outra coisa... O que era mesmo?

Eu sei que outra coisa era, quer que eu diga?

Não.

Então não digo.

Já sei: azeite doce.

Isso mesmo. Sim, são coisas boas.

Você também gosta?

Aprendi a gostar com a senhora.

Quando meu pai morreu, eu era muito pequena.

Eu sei. Tinha seis anos.

Você tinha seis anos?

Não: a senhora.

Você se lembra?

Lembro a senhora dizendo isso.

Minha mãe foi quem me falou. Ela ficou viúva, sempre vestindo preto. Olhe, meu filho, chegue mais perto, quero lhe contar uma coisa.

Pode dizer, mãe.

Minha mãe também morreu.

Eu sei.

Quem lhe contou?

Mãe, minha avó morreu há mais de vinte anos.

Sua avó?

Minha avó, sim, sua mãe.

É verdade. Sua avó. Mas você está enganado, meu filho, ela morreu agora.

Agora?

Nestes dias.

Mãe...

Semana passada, foi.

Mãe...

Ela morreu, eu fiquei só, cadê os outros?

Que outros?

Eu não tenho outros filhos?

Tem, sim, tem mais quatro.

E cadê?

Eles vêm visitar a senhora, mãe, em dias diferentes. Só não Luiz, que mora em São Paulo. Ângela vem sempre.

Que Ângela?

Sua filha.

Ah, mas faz muito tempo que ela veio.

Ela esteve aqui ontem, mãe.

Não.

Foi, sim, ela me telefonou e disse.

Não, ontem foi o enterro de minha mãe. Vieram os parentes todos.

Ah... A senhora quer mais doce?

Um pouquinho mais, com queijo.

Sempre com queijo.

Você não esquece.

Não esqueço. Seu apetite continua ótimo.

Não, eu como pouco.

Sim, mas não os doces...

Doce alegra a refeição.

Pois vá comendo, mãe.

É só este pedacinho... Bom, já acabei.

É, acho que um terceiro prato seria demais. Veja, já vem o cafezinho. Deixe que eu sirvo. Duas colheres de açúcar?

Três.

Está bem, três. E agora o café. Mexa bem. Está no ponto?

Está, mas minha mãe fazia melhor.

É verdade, eu me lembro do café dela.
Ela morreu.

Eu sei.

Acho que foi ontem.

Mãe...

Não, não foi ontem. Chegue mais perto para eu lhe dizer: ontem morreu ele.

Ele quem?

Meu marido.

Meu pai? Mas ele morreu há quinze anos.

Sim, seu pai. Ele morreu, minha mãe morreu, eu fiquei sozinha. Tudo de uma vez, por estes dias.

Meu pai morreu há quinze anos, mãe.

Você não sabe, eu sei. Foi por estes dias que ele morreu, junto com minha mãe. E com meu pai. E meu padrinho, e minha madrinha. Morreu todo mundo, eu fiquei sozinha, sem ninguém.

Mãe, você não está sozinha.

Não tem mais ninguém, ninguém. Morreu todo mundo. Morreu todo mundo. Todo mundo.

Mãe...

Você não sabe, passa o tempo viajando. Seu pai também viajava muito. Para trabalhar. Trabalhava demais.

Eu me lembro. Sentia falta dele quando viajava.

Eu também. Mas ele não morreu em viagem.

Não.

Ele morreu... Nem sei, foi de repente... Ele estava bem, forte e bonito, e então me disseram que estava morto...

Sim, ele morreu ainda jovem.

Meu coração está batendo muito, meu filho, bote a mão aqui. Está sentindo? Ficou assim quando todo mundo morreu e eu acabei sem ninguém. Só quando durmo ele se aquieta, batendo de mansinho... Acho que esquece que todo mundo morreu.

Mãe, vamos falar de outra coisa. A senhora está gostando daqui?

Eu gosto, mas não é minha casa.

Agora é, mãe. A senhora não está sendo bem tratada?

Acho que sim, mas de noite eu vejo umas coisas, umas coisas brancas, parecem visagens. Ou gente fazendo visagem.

Fazendo visagem... Esta expressão é bem da senhora, mãe. Toda vez que era surpreendida pelo súbito surgimento de alguém, principalmente à noite, lá vinha a pergunta, no susto: ô, fulano (ou fulana), está fazendo visagem?

Pois é, tem gente que fica fazendo visagem, assustando a gente.

Acho, mãe, que quem está fazendo visagem aqui são as funcionárias, que passam à noite para ver se tudo está bem, se alguém está precisando de alguma coisa.

Pode ser, mas sinto falta de minha casa. Por que você não me leva para lá?

Não tem mais casa, mãe.

Por quê? Ela caiu?

Não, foi vendida, a senhora não podia mais ficar lá, precisava de cuidados profissionais.

Eu sempre soube me cuidar. Pergunte a seu pai.

Sim, a senhora sempre soube se cuidar, como cuidou de toda a família a vida inteira, mãe.

A família... Agora fica todo mundo viajando, não sei por quê. Ah, acho que vou pro meu quarto, estou cansada...

Mãe, deixe que eu ajudo a senhora a se levantar. Devagar, assim... E D. Delza já está aqui. Mas a senhora é forte, nem precisaria de ajuda.

Não, eu fiquei fraca. Estou com sono.

Depois de descansar um pouco, a senhora ficará bem disposta.

Chegue perto, meu filho, para eu lhe dizer um segredo.

Pode dizer, mãe.

Todo mundo morreu, de repente, e eu fiquei sozinha, sem ninguém. Todo mundo morreu, meu filho.

Mãe...

Vá com Deus, meu filho. Mas tome muito cuidado com as estradas, elas estão cada vez mais perigosas.